A árvore dos grous - texto didatizado
- caminhosdecidadani
- Sep 24
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Updated: Sep 29
Memórias de Natal

Quando ainda não era suficientemente crescido para usar calças, a minha mãe tinha sempre medo de que eu me afogasse no lago que ficava à beira de casa. Estava constantemente a dizer-me que não fosse brincar para lá, mas eu não fazia caso, porque nele havia peixes de cores deslumbrantes.
A última vez que fui para o lago era um dia triste de Inverno, demasiado frio para os peixes se mostrarem. Nunca saíram de baixo das pedras e o que eu arranjei foi uma grande constipação. A minha mãe ia, de certeza, ficar zangada comigo e adivinhar logo como é que eu tinha molhado as luvas. Mas talvez ficasse contente por me ver.
— Mãe, já cheguei — gritei eu.
Não houve resposta.
Costumava vir sempre à porta receber-me. Voltei a chamar, e por fim respondeu. A voz parecia vir de muito longe. Ouviu-me, mas não veio ter comigo. Deve estar doente, pensei. Encontrei-a na sala a fazer dobragens em papel. Limitou-se a menear a cabeça, mal olhando para mim. Mas havia à minha espera duas fatias do meu bolo preferido, o que me reconfortou um pouco.
— Porque estás a fazer grous de papel? — perguntei eu.
— Porque quero realizar um grande desejo — respondeu, sem levantar os olhos.
— Vais dobrar mil pássaros para o teu desejo se realizar?
— Nem que seja dois mil… — estendeu os braços e passou-me a mão fria pelo rosto. — Tens a cara a arder!
Franziu o sobrolho e olhou para mim em silêncio. Baixei a cabeça e não me atrevi a falar. Ela sabia… Sempre que a minha mãe achava que eu estava constipado, dava-me um banho quente.
— Dez minutos, nem menos um segundo — disse ela.
E nem as costas me limpou. Ouvi os chinelos a afastarem-se ao longo do corredor. Depois fechou-se uma porta. Não regressou para me fazer companhia. É melhor pedir desculpa, disse eu, a pensar em mim. Mas antes que pudesse dizer que estava arrependido, a minha mãe pôs-me em pijama!
— Não tenho vontade de ir para a cama.
— Tens de ficar muito agasalhado e quente.
(...) Após um longo momento, ouvi um ruído vindo do jardim. Talvez o velho jardineiro tivesse vindo podar mais uma vez as nossas árvores. Levantei-me e abri a janela. Lá fora, nevava. E a minha mãe cavava em redor de uma pequena árvore.
— O que estás a fazer? — gritei eu.
Ela parou e olhou para mim.
— Fecha imediatamente essa janela e volta para a cama!
(...) Começava a adormecer quando ela entrou. Trazia uma árvore num vaso azul. Era o pinheirinho que os meus pais tinham plantado quando nasci, para que eu vivesse muitos anos, tal como a árvore.
— O que estás a fazer com a minha árvore? — perguntei eu.
— Já vais ver — respondeu ela, ao colocar o vaso no chão. — Sabes que dia é hoje?
— Hum... Falta uma semana para a passagem de Ano.
— Exatamente — disse a sorrir!
Depois, foi à sala buscar os grous prateados e alguns apetrechos de costura.
Por fim, sentou-se. Passou um fio por um dos pássaros e pendurou-o na árvore.
— Hoje portei-me o dia todo de uma forma um tanto esquisita — disse ela.
Eu ia começar a falar, mas interrompeu-me.
— Se prometeres ficar na cama, digo-te porquê.
— Prometo — disse eu.
— Como sabes, muito antes de vir para aqui, onde encontrei o teu pai, nasci e vivi num país muito distante.
Acenei que sim com a cabeça.
— Na Califórnia — respondi.
— Lá, hoje não é um dia como os outros. Se estivesses na Califórnia, verias, por todo o lado, árvores como esta, enfeitadas com luzes cintilantes e bolinhas de ouro e prata. E debaixo de cada árvore presentes que as pessoas oferecem aos amigos e àqueles que amam.
— Eu gostaria de ter um papagaio samurai — disse eu.
— Damos e recebemos, filho. É um dia de amor e de paz. Os desconhecidos sorriem uns para os outros. Os inimigos fazem uma trégua. Precisamos de mais dias como este!
E pendurou na árvore o último pássaro.
— Que lindo! — gritei eu.
— Ainda não é tudo — disse.
E foi à cozinha buscar velas, que prendeu aos ramos.
— Vais queimar a minha árvore? — perguntei eu.
A minha mãe riu-se.
— Só as velas, e apenas por um instante. (...)
E quando acabámos de acender as velas, ela ficou em silêncio.
Estava a recordar. (...)
Allen Say
Uma história que explora o poder das tradições familiares, do amor e da celebração, transmitindo a mensagem de que a conexão entre as gerações e os momentos especiais podem criar memórias que duram a vida toda.
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